Fome, frio, sede e perrengues: os bastidores do Dakar 2021

Sem banho, sede e até fome. Perrengues não assustam quem tem a aventura off-road correndo nas veias

O mundo das competições automobilísticas até pode ter um cenário de glamour. Mas, certamente não é o mesmo ambiente visto durante os mais de 15 dias da maior competição off-road do planeta, o Rally Dakar. Na edição deste ano, a situação das equipes ficou um pouco mais desafiadora. Além do frio, alimentação restrita e perrengues para algumas necessidades básicas do dia a dia, a inclusão dos protocolos de saúde para a prevenção da contaminação do Covid-19 também isolou as equipes.

E são justamente essas grandes adversidades do mundo da aventura que atraem os competidores a cada ano, tornando a competição um cenário perfeito para situações curiosas em que os participantes precisam se virar com o que tem. Mesmo com uma estrutura gigantesca, mais de 300 veículos e competidores de diversas partes do mundo, um simples banho frio pode colocar um dos principais destaques do rally “em apuros”, como explica o navegador brasileiro Gustavo Gugelmin, que faz dupla com Austin Jones pela Monster Energy Can-Am.

“Perrengue aqui é constante, passando frio e fome. Mas, vou confessar que difícil mesmo é lidar com o banho e o com vaso sanitário do motorhome”, brinca Gugelmin, lembrando que, apesar do Dakar ser a mais importante competição do mundo off-road, ela acontece, justamente, em áreas completamente isoladas.

Todos participantes, no entanto, estão se sentindo seguros no Dakar 2021, quando o tema é a pandemia do coronavírus, como explica Reinaldo Varela, campeão da prova em 2018 e integrante da equipe Monster Energy Can-Am. “O mundo está lidando melhor com a pandemia e tem a perspectiva da chegada próxima da vacina. Psicologicamente, acho que isso ajudou bastante a realização da prova neste ano”, continua Varela.

O piloto brasileiro é pura garra, e não se abate com as dificuldades e falta de conforto. “Aqui a coisa é preta mesmo, sem facilidades. Mesmo assim, para mim nem precisava de dia de descanso não”, explica Varela, se referindo ao sábado de folga das provas, que retornam apenas no domingo, quando os participantes partem para a etapa maratona.

Navegador sem banho

O ambiente livre do coronavírus é fundamental no Dakar 2021. Mas alguns “luxos” podem ficar de fora do acampamento, como o banho quente – o que faz falta para muitos competidores, como confessa Gustavo Gugelmin, que integra a dupla que assumiu a vice-liderança na geral após seis etapas.

“Eu não tomo banho gelado, não tem jeito. Eu quase morri de frio uma vez, tentando tomar banho, mas o chuveiro não funcionou. Fiquei sem banho. Eu estava tomando banho a cada dois dias por causa disso”, diz Gugelmin, brincando que, pelo menos até agora, Jones não reclamou do “navegador Cascão”.

Banho também é luxo para as equipes de fotógrafos que cobrem a competição. As belas imagens clicadas pelas lentes de profissionais de diversos países, encobrem perrengues ainda piores. Nas redes sociais, teve profissional confessando que de 6 dias, foram apenas 2 banhos. A maioria deles, pernoita nos acampamentos nas barracas individuais, montadas no chão, diretamente na areia mesmo ou até mesmo no “trecho” como chamam os locais por onde os competidores passam.

José Mario Dias, especializado em automobilismo, com 9 participações no Dakar, faz parte da equipe oficial da competição e tem um dos dias mais longos. “Temos de fazer imagens de todos os competidores, de todas as categorias, todos os dias. Nosso dia é sempre longo. Mas é um prêmio poder viver tudo isso aqui”, conta Zé Mário, que já teve de seguir acompanhando as provas, em 2016, de carona, depois que o carro da equipe capotou.

Sem a planilha antecipada dos trechos das provas, Zé Mario ainda destaca a necessidade de tomadas de decisões muito rápidas para definir pontos das fotos, como um dos desafios do Dakar. Mas, sempre tem espaço para a torcida. “Quando vemos um UTV apontando, já ficamos tensos, esperando pelos brasileiros. Assim já sabemos se estão indo bem na especial do dia”, comenta o fotógrafo que tem mais de 15 anos de experiência em clicar provas automobilísticas.

Não basta rodar por quilômetros no habitáculo de um UTV. É preciso ser bom também nos pequenos espaços, que podem até ser considerados luxuosos nos acampamentos. Para os afortunados que podem dormir nos motorhomes, o banheiro pode ser um grande obstáculo a ser vencido para as necessidades básicas.

“Eu não sabia, mas o assento do vaso sanitário é giratório, dando mais espaço para as minhas pernas. Depois que eu postei essa dificuldade na minha rede social, recebi uma mensagem explicando que girava. Eu não tinha espaço, tive de fazer tudo de lado. Pensa na manobra”, diverte-se Gugelmin.

Alimentação na maior competição off-road do mundo

O que não pode ser levado na brincadeira, no entanto, é o cuidado com a alimentação e hidratação, que é feita no mesmo acampamento. E é no refeitório que acontece a reunião e confraternização de competidores de quase 50 países.

“É de um simbolismo muito bonito o fato de essas bandeiras se cruzarem nas trilhas do Dakar, no melhor espírito de esportividade e até fraternidade – porque faz parte da ética do Dakar ajudar um competidor em sérios apuros. E isso não é raro”, explica o navegador Maykel Justo, que forma dupla em 2021 com Varela. “Mais do que isso, todos convivemos em paz e clima de colaboração nos acampamentos e refeitórios, até mesmo pela questão da covid”, completa o navegador da equipe Monster Energy Can-Am.

Se no acampamento tudo parece funcionar bem, o desafio maior para os competidores é durante os longos dias da competição – nesta primeira semana, uma das etapas teve mais de 800 quilômetros de deslocamento total. Pode parecer até difícil de acreditar, mas, depois de passar por dunas, areia voando e pedra do Deserto da Arábia Saudita, é comum os participantes ficarem horas sem comer nada.

“Não tem jeito, muitas vezes no Dakar a gente passa fome e sede. Fiquei desidratado um dia, senti que estava ficando lento na navegação, aí comecei a me hidratar, tomei água de madrugada, a cada 5 km tomava água no rali e já melhorei”, revela Gugelmin.

Frio no deserto árabe e preparação de pilotos

O frio no deserto saudita também não está dando trégua. Nos últimos dias, os pilotos percorreram as centenas de quilômetros com jaquetas grossas para se protegerem do frio, mesmo com o sol a pino. A temperatura chega em 0ºC no meio da noite mesmo dentro do motorhome e não costuma passar de 12ºC durante o dia de competição. “É realmente muito frio. O Dakar, que costuma ser sempre quente, na Arábia Saudita faz frio. Uma vantagem é que neste ano temos o para-brisa no Can-Am”, diz Gugelmin, que mesmo com toda a proteção do para-brisa e capacete já visitou a tenda de atendimento médico por conta dos arranhões nos olhos causados pelos grãos de areia.

Campeão do Dakar em 2018 ao lado de Reinaldo Varela, Gugelmin comanda a navegação de um piloto norte-americano e acredita que existe espaço para mais brasileiros entrarem nesse tipo de competição.

“Fazer navegação para um americano, em uma equipe de ponta, é um marco para o Brasil. Estou representando todos os navegadores do País. Navegar falando em inglês é outro desafio. Nós temos potencial de colocar mais navegadores no Dakar e me sinto muito feliz de estar dando tudo certo. Quero incentivar mais gente para competir nesse nível de reconhecimento internacional que eu alcancei, e assim termos mais brasileiros nessa carreira no automobilismo”, diz Gugelmin, que também já foi campeão do Sertões nos carros em 2015.

Aliás, sintonia entre piloto e navegador é mais do que obrigatória. Mas a equipe de mecânicos também precisa sambar para atender aos desejos dos pilotos. “Eles têm manias também, e nós atendemos, claro. O Reinaldo praticamente faz checklist de tudo que quer no UTV, em cada etapa. Pede para regular o banco, volante, quer saber onde estão as ferramentas, além de testar as várias GoPro que estão espalhadas pelo seu Can-Am”, se diverte Ednei Galvão, conhecido como Pig, mecânico brasileiro da equipe Monster Energy Can-Am.

Com o dia de descanso neste sábado, 9 de janeiro, os UTVs passam por revisão geral, ou seja, são totalmente desmontados e cada sistema é checado já que o retorno das especiais acontece no domingo, 10 de janeiro, é a maratona, que não permite manutenção dos carros após o final do dia. O trecho total do domingo é de 737 km, sendo 471 km de especial cronometrada.