Em meio à maior virada regulatória da Fórmula 1 em uma década, a Red Bull opta por se reinventar — dentro e fora da pista
A saída de Christian Horner da Red Bull Racing não pode ser analisada apenas como consequência de disputas políticas internas, desgaste de imagem ou crises de bastidores. Ela se encaixa em algo maior. Muito maior. A Fórmula 1 está prestes a mudar profundamente em 2026 — não só em regulamento, mas em filosofia. E a Red Bull, talvez antes de todas, percebeu que precisava mudar junto.
Durante décadas, a Fórmula 1 se construiu sobre um princípio quase sagrado: os regulamentos existem para serem explorados. A história da categoria é, em grande parte, a história de engenheiros que encontraram brechas onde ninguém mais viu. Do efeito solo aos difusores duplos, passando por interpretações criativas de combustível, aerodinâmica e unidades de potência. Limitar essa criatividade sempre foi visto como limitar a própria essência do esporte.
Mas o cenário que se desenha para 2026 é diferente. Pela primeira vez em muito tempo, a FIA deixa claro que não haverá tolerância para “zonas cinzentas”, especialmente no que diz respeito às novas unidades de potência. Não é força de expressão. O próprio diretor de monopostos da FIA, Nikolas Tombazis, foi direto ao afirmar que tentar explorar brechas no regulamento dos motores seria, nas palavras dele, “suicídio”.
Isso muda tudo.
A Fórmula 1 que surge em 2026 não quer mais ser apenas um laboratório de interpretações extremas. Quer ser um produto mais compreensível, mais controlado e mais previsível do ponto de vista regulatório — ainda que tecnologicamente avançado. Motores com divisão 50/50 entre combustão e energia elétrica, combustíveis sustentáveis, limites operacionais mais rígidos e fiscalização reforçada apontam para uma categoria onde o jogo político-regulatório perde espaço para a execução técnica dentro de regras bem delimitadas.
É nesse contexto que a decisão da Red Bull ganha outra camada de leitura.

Após a morte de Dietrich Mateschitz, o projeto Red Bull passou a conviver com um vácuo de poder. Horner e Helmut Marko representavam não apenas a gestão esportiva, mas um DNA combativo, confrontacional e historicamente disposto a tensionar o sistema — FIA, rivais e até parceiros internos. Esse modelo funcionou brilhantemente em uma Fórmula 1 de confronto político permanente. Talvez seja menos funcional na Fórmula 1 que vem aí.
As declarações recentes de Oliver Mintzlaff ajudam a amarrar esse raciocínio de forma ainda mais clara. Ao explicar a demissão de Horner, Mintzlaff fez questão de afastar a ideia de uma decisão impulsiva ou de um simples “corte de risco”. Ele afirmou que a empresa estava 100% convicta da escolha e que ela não foi tomada da noite para o dia. Mais do que isso, deixou explícito que a Red Bull precisava “virar a página”.
“Christian tem um histórico fantástico com a equipe e alcançou muito sucesso”, disse ele ao ‘De Telegraaf’. “Todos aqui na empresa, inclusive eu, o admiramos pelo que ele fez. Mas isto também faz parte de uma organização profissional. Não podemos continuar confiando apenas na história, e sentimos que era altura de virar a página e começar um novo capítulo. “Não foi uma decisão fácil, mas também não a tomámos de um dia para o outro.”
Quando Mintzlaff diz que não se pode “continuar confiando apenas na história”, ele toca num ponto sensível: o sucesso passado deixou de ser garantia de competitividade futura. A leitura interna da Red Bull foi a de que certos métodos, estruturas e formas de liderança estavam presas a uma lógica que já não dialogava com o próximo ciclo da Fórmula 1. Não se tratava de negar conquistas — oito títulos de pilotos e seis de construtores falam por si —, mas de reconhecer que o ambiente mudou.
Essa fala ganha ainda mais peso quando colocada ao lado da transição regulatória de 2026. A Fórmula 1 caminha para um modelo mais institucionalizado, menos tolerante a conflitos públicos e a disputas políticas abertas. Nesse cenário, a imagem de uma equipe constantemente em guerra com a FIA, com rivais e até com seus próprios parceiros passa a ser um passivo, não um diferencial competitivo.
A saída de Horner primeiro, seguida pela confirmação da despedida de Marko, não parece coincidência. É um reposicionamento estratégico. A Red Bull opta por entrar na nova era com uma liderança menos personalista, menos confrontacional e mais alinhada ao discurso de estabilidade que a própria categoria tenta vender ao mercado, a fabricantes e a investidores.
Curiosamente, esse movimento acontece em um momento de baixa técnica relativa da equipe. E isso, longe de ser um problema, pode ter sido o gatilho ideal. Grandes transformações raramente acontecem no auge. Elas costumam nascer quando o modelo começa a mostrar sinais de esgotamento.
Ao se reinventar agora, a Red Bull tenta chegar a 2026 não como a equipe que precisa defender um passado glorioso, mas como uma organização redesenhada para competir em uma Fórmula 1 diferente — mais regulada, mais vigiada e menos permissiva a guerras de bastidores.
No fim das contas, a imagem construída por Horner e Marko — vencedora, mas dura, polarizadora e carregada de conflitos — talvez não combinasse mais com a Fórmula 1 que está sendo desenhada. A Red Bull entendeu isso antes de muitos.
E, em um esporte onde antecipar tendências sempre foi uma vantagem competitiva, talvez essa seja a aposta mais importante da equipe rumo a 2026.
