Fala de Horner levanta questão: por que é difícil aceitar que mulheres gostam da F1?

Com o passar dos anos, a F1 tem tomado cada vez mais iniciativas para atrair novo público. Além de plataformas de transmissão como a F1TV, também tem produzido em conjunto com a Netflix a série Drive to Survive, que mostra os bastidores do campeonato. Essas e tantas ações já se mostraram bastante eficazes para atingir o objetivo.

Em recente pesquisa divulgada no final de 2021, a principal categoria do automobilismo mundial indicou que os fãs agora estão mais jovens com média de 32 anos. Além disso, quando o assunto é gênero, a presença das entrevistadas dobrou em quatro anos e a maior parte estava na Ásia Central e África.

Outro dado apontado foi que curiosamente, apesar de as mulheres engajarem menos em se envolver e praticar os eSports, são maioria quando o assunto é assistir: das mulheres, 30.4% afirmaram acompanhar, enquanto os homens, apenas 23.9%.

E não bastando isso, a W Series também corrobora o argumento de que há maior interesse das mulheres em relação ao esporte a motor. Dos entrevistados, 12% afirmou acompanhar a categoria exclusivamente feminina que passou a dividir os finais de semana com o certame no último ano.

Então, por que ainda é tão difícil aceitar que as mulheres gostam de fato da F1? Christian Horner, chefe da Red Bull, deu declaração recente dizendo que “a F1 está atraindo diversas meninas por conta dos pilotos que são muito bonitos”.

W Series Silverstone Naomi Schiff
Algumas estudantes que estiveram presentes em uma etapa da W Series (Foto: W Series)

A declaração, sem qualquer fundo de verdade, apenas mostra duas coisas. Primeira é que o dirigente não conhece o público que está consumindo o produto em que ele está imerso; segundo, mulheres ainda são privadas de gostarem de esportes apenas por serem mulheres.

Alessandra Alves é jornalista de automobilismo e atualmente está na Rádio BandNews FM. Tem longa estrada no esporte, afinal, “fiz minhas primeiras coberturas de F1 em 1991, quando trabalhava na Folha de S.Paulo. Foi meu primeiro emprego”, contou ao F1Mania.net. “Fiquei afastada do tema até 2007, quando fui convidada para participar da transmissão do GP da Turquia daquele ano, pela rádio BandNews FM. A partir de 2008, eu me tornei integrante fixa dessa equipe e estou lá até hoje, portanto, esta é minha 15ª temporada”, continuou.

E com tanta bagagem em sua carreira, pode afirmar com certeza de que as mulheres estão acompanhando muito mais a F1 hoje em dia, certo?  “Sem dúvida que sim. Quando comecei a frequentar autódromos, nos anos 1990, já havia mulheres que acompanhavam a categoria, mas a predominância era visível de homens”, contou.

“Com o passar dos anos, houve um progressivo envelhecimento do público da Fórmula 1, que se manteve com predomínio de homens. O fenômeno que transformou radicalmente o público da categoria foi o rejuvenescimento da audiência. Ao mesmo tempo que surgiram mais jovens, também surgiram mais mulheres. Acho que não é possível dissociar uma coisa da outra”, pontuou.

E qual o motivo desse interesse cada vez maior por parte do público feminino? “Porque a empresa que gerencia a Fórmula 1, a Liberty, mudou sua forma de comunicação com o público, abraçando as redes sociais, humanizando a categoria e firmando sua narrativa no chamado storytelling”, ressaltou ao F1Mania.net.

“Inúmeros recursos foram usados para isso, como a série “Drive to Survive”, em conjunto com a Netflix. O tema Fórmula 1, que era associado a homens de meia idade, passou a se mostrar atraente para um público jovem que descobriu um universo multicultural e transnacional. Ao se mostrar mais humana, diversa e até mesmo contraditória, a Fórmula 1 aumentou sua atratividade para um público que fundamentalmente gosta de consumir histórias e cultuar personagens. Isso se aplica a todos os gêneros, não apenas às mulheres”, continuou.

Basta ler as palavras de Alves acima. A beleza dos pilotos jamais entrou em pauta ou se tornou motivo para o interesse das mulheres – mas deixo claro: se quiser acompanhar por isso não tem qualquer problema, afinal, não existe maneira certa ou errada para torcer pela equipe ou pelo piloto que quer torcer, ou jeito correto de acompanhar um esporte.

Então, a grande questão que fica é: se as mulheres estão mais envolvidas, engajadas, interessadas, por que não aceitam, de uma vez por todas, que acompanham a F1 unicamente pela F1? “Por causa dos estereótipos. Homens da geração dos dirigentes de Fórmula 1 foram acostumados a associar a presença feminina no esporte como acessórios dos pilotos (esposas, namoradas, mães etc.) ou ao ambiente (grid girls, promotoras de marcas diversas no paddock etc.). Só que, mesmo dentro da Fórmula 1, há mulheres ocupando funções técnicas, administrativas, de comunicação etc., o que é um reflexo da própria sociedade, que cada vez mais vê mulheres ocupando funções desse tipo”, explicou.

“Essa nova realidade já deveria ser suficiente para alguns dos atores da Fórmula 1 (dirigentes, pilotos, jornalistas e parte do público) perceber que existe muito mais apelo para uma mulher se inserir nesse meio do que apenas (e simplesmente) a forma física dos pilotos. Se a gente chegar para um fã de carros e perguntar para ele se ele vai a um Salão do Automóvel só para ver as modelos, ele certamente diria que não. Diria que aquelas mulheres bonitas são um “bônus” daquele ambiente”, seguiu.

“Não há mal nenhum em mulheres (ou homens) que admiram a beleza física de alguns pilotos, o que não quer dizer que esse público novo está lá só por isso. Mas aqui entra outro paradigma difícil de superar: para a sociedade arcaica, um homem admirar uma mulher bonita é algo quase fisiológico. Quando uma mulher externa sua atração pela beleza física de um homem, é algo quase controverso, como se estivesse subvertendo alguma ordem moral”, emendou.

E afinal, Alessandra, quais os desserviços trazidos por essa fala de Horner? “Vários: reforçar o estereótipo de que mulheres só seguem Fórmula 1 para ver homens bonitos; desestimular meninas e mulheres que poderiam seguir a categoria por não quererem ser estereotipadas dessa forma; jogar contra os esforços de popularização e rejuvenescimento da categoria; reduzir as probabilidades de termos mais pilotas, mais engenheiras, mais técnicas, mais mecânicas etc. na Fórmula 1, simplesmente porque foram desestimuladas a despertar o interesse pelo tema para fugir desse estereótipo”, opinou.

“A fala de Horner é um desserviço para a própria Fórmula 1 que, pelo menos no discurso, tem se inclinado na direção da inclusão feminina. Ainda que a categoria, como instituição, tenha optado pela narrativa da diversidade por questões meramente mercadológicas, pelo menos a mensagem transmitida é de acolhimento. É possível questionar se há ações concretas em relação a isso, mas nenhuma instituição que se pretenda atrativa para investimentos nacionais pode se manter com o discurso arcaico de Horner. Ainda que ele, em seu íntimo, pense isso mesmo, seria mais inteligente se adotasse alguma assessoria de imagem que alinhasse seu discurso com a modernidade. Não para “lacrar”, como alguns gostam de dizer, mas para não se mostrar um parceiro comercial micado”, encerrou.

Mas se as palavras de Alessandra com 15 temporadas nas costas, coberturas in loco em grandes veículos e atualmente comentarista, não é suficiente, algumas fãs também afirmaram os motivos que começaram a acompanhar a categoria. E chocante ou não, nenhuma alegou a beleza de um piloto – que fica de capacete, balaclava, dentro de um carro e atrás de um halo durante boa parte do final de semana.

“Por causa da combinação de esporte e ciência que forma a F1. É um esporte onde o desempenho do atleta e a inovação tecnológica andam de mãos dadas e isso é fascinante demais”, disse @wonderames. “Estudo engenharia mecânica e participei de competições do projeto baja. Tomei gosto por competições automobilísticas. Comecei a assistir F1 (2020), logo depois foi lançado o W Series, que me motivou muito também”, completou @belittle_

“Achei legal os bastidores (drama, estratégia e desenvolvimento do carro) mostrado no Drive to Survive. Em 2020 acompanhava só os highlights [melhores momentos] e algumas corridas, mas sem dúvidas a disputa pelo campeonato me prendeu em 2021”, complementou @naomitanaka_.

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